domingo, 18 de dezembro de 2011

TRAGÉDIA DO POVO

"O que eu finalmente mais sei sobre a moral e as obrigações do homem devo ao futebol..."
Albert Camus

"O Futebol é o ópio do povo." A frase é velha e gasta. Ela foi e é proferida ad nauseam por gente metida a politizada, gente que acredita tolamente que tudo na vida foi concebido pela terrível e maligna burguesia para ludibriar os pobrezinhos inocentes e coitados... Maniqueísmo, simplismo e reducionismo dos brabos! O futebol não existe só pra manter o povo politicamente "dopado". Pois não é só a ralé que se entrega ao rito domingueiro. No Brasil, o esporte é cultuado por nossos esfarrapados tanto quanto por nossos homens e mulheres de escol. E não é só no terceiro mundo que ele é venerado: espanhóis, italianos, ingleses, etc., talvez o apreciem mais do que nós. Em todos os pontos da escala social e global ele encontra seus ardorosos fiéis. E não é pra menos! O futebol é um espetáculo onde figura a própria Vida (com V maiúsculo!), e só encontra paralelo no teatro trágico dos gregos. Nos estádios, ante o furor das torcidas, tal como ocorria nos palcos da Atenas antiga, está em cena a luta agonística pra suplantar os demais, o destino inescapável que tritura as existências e, sobretudo, a sua marca distintiva: a injustiça fatal e sem razão que governa os resultados. É o imponderável rodriguiano! São as Moiras, Deusas cegas e irascíveis, que "tecem" as partidas e apontam campeões e derrotados... A vida decidida no bico da chuteira. Há toda uma sabedoria da bola, uma filosofia dos gramados, que escapa aos espíritos mais obtusos, aqueles miseravelmente preocupados com coisas que sejam úteis e que façam sentido - o tipo de gente que diz que é "absurdo um bando homens correndo atrás de uma bola", como se não fosse absurdo o fato de estarmos vivos, como se não fosse absurdo fazer tudo o que fazemos na vida. "Futebol é inteligência em movimento", disse o grande filósofo, que também tinha sido goleiro, Albert Camus. O povo não é distraído ou entorpecido por aquele bailado insano de chutes; ele não fica cego à realidade (que, acredita-se, seria acessível apenas aos sabichões que pensam não terem se deixado seduzir pelos sortilégios dos gols) somente por contemplar semanalmente o duelo de onze contra onze. O povo, antes, é educado pela bola do mesmo modo que os gregos eram educados pela tragédia. Pedagogia trágica e mítica, o futebol, como a arte (aliás, se tomássemos aquele lugar-comum como verdade teríamos de considerar toda forma de arte como um ópio, sobretudo, a música, que também extasia as multidões), traz ensinamentos sutis, não daqueles expressos por palavras e por teorizações racionalistas, mas daqueles outros, que calam fundo no coração, justamente porque se exprimem de maneira ritual  Seja como catarse aristotélica, onde os sentimentos são purgados, seja como um enrobustecimento frente ao artístico de que fala Nietzsche, o esporte mais badalado do mundo cumpre uma função psíquica e filosófica similar à das, também trágicas, touradas e gladiatura: ministrando as lições da glória e do fracasso, ele nos põe a par do horror da gratuidade e da crueldade inexorável da existência. O futebol fortalece e enobrece a alma!
... Quando ouço aquela ladainha entoada pelos pedantes especializados em protestinhos baratos, penso se, ao invés do futebol, não sejam certas doutrinas e filosofias caducas os verdadeiros ópios que põem o povo em torpor. 

domingo, 20 de março de 2011

DISFARCES


... É fato corrente. Basta um olhar um pouco mais apurado para notar: as virtudes e qualidades mais ostensivamente expostas são os disfarces (espontâneos, inconscientes, automáticos) para os vícios e os defeitos que justamente lhes correspondem. A generosidade, por exemplo. Quando manifestada de maneira ruidosa, não passa de uma máscara construída para dissimular o mais arraigado dos egoísmos. Envergonhado, criticado em função de seu vício, o indivíduo egoísta arma-se de boas ações, adota um discurso entusiasta da pureza e da benevolência e exibe-os como pode. E nessa ostentação os pavões da bondade traem-se e deixam entrever aquilo precisamente que cuidaram para esconder. O movimento contrário também não é incomum: o egoísmo, que por muitos é tomado por virtude, é, em muitos casos, a roupagem exibicionista usada por uma inocência que não se aceita. O inocente, provocado e diminuído, sente a necessidade de encobrir esse traço visível da sua personalidade e esmera-se em atitudes que expressam, de maneira gritante, uma preocupação exclusiva consigo mesmo e um desprezo forçado pelos outros. Assume, contra sua “natureza”, uma malícia que não é dele, artificial. A autoconfiança, do mesmo modo, se anunciada aos quatro ventos, certamente corresponde à camuflagem de uma insegurança orgulhosa. O inseguro cioso de sua própria dignidade disfarça seu humilhante defeito empertigando-se em uma postura altiva, em um comportamento soberbo. Não se passa outra coisa com a extroversão exagerada.  Quase sempre ela vela uma timidez sofrida. Cansado das limitações que a vida lhe impõe, o tímido traveste sua falha de conduta com uma expansividade simulada, compondo gestos vistosos que não visam outra coisa se não ocultar seu constante embaraço. “Dentro de cada Elke Maravilha existe um tímido tentando se esconder”, já observara Luis Fernando Veríssimo. A aflição do acanhamento conduz, assim, a um arremedo de desinibição. Os casos e exemplos são inumeráveis e devem nos pôr de sobreaviso. Que não nos enganemos: o alardear de uma virtude, uma qualidade, ou, quem sabe até, de um estado emocional (a felicidade, por exemplo), é o atestado inconfundível da sua ausência e da sua adoção postiça. É provável até, que aquele que real e naturalmente possua uma virtude jamais a ostente; acredita-se, ao contrário, corrompido pelo vício oposto, como o generoso, que faz muito pelos outros, mas que, através das lentes da generosidade, vê esse muito como pouco, tomando-se por o mais sórdidos dos egoístas. O indivíduo nunca é transparente; opaco, ele requer que identifiquemos seus disfarces. 

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

CETICISMO CONTEMPORÂNEO

Há uma diferença fundamental entre o ceticismo contemporâneo e aquele outro ceticismo nascido e desenvolvido com a modernidade. Tributária do racionalismo grego clássico, a postura cética consolidada com as revoluções burguesas pôs em suspeição e descrédito somente as matrizes explicativas dominantes da época, ou seja, a fé e a religião. Tomadas como obscuras formas de conhecimento, elas foram vistas apenas como produtoras de crendices e superstições, as quais careciam de análises comprobatórias e conduziam ilusões e erros. Para os céticos racionalistas, somente o saber racional – único confiável – poderia atingir a verdade e, através da manipulação e controle da realidade, levar o homem ao caminho do bem ou, nas palavras da época, ao progresso. Tratava-se de um movimento que, supondo a exclusão entre fé e racionalidade, matou de maneira impiedosa o fantasioso Deus para pôr em seu trono a iluminadora, soberana e, agora, legitima doadora de sentido pra vida humana, razão. Tal ceticismo foi ficcionalizado por Ivan Turgueniev, em seu romance Pais e Filhos, no personagem Bazarov – homem utilitarista, devotado à ciência, particularmente à biologia, desprezador das vãs convenções aristocráticas e das tolas crenças do povo, além de negador do valor da arte e do amor, mesmo tendo sucumbido ao seu poder. Mais radical e extremo, o ceticismo do que se convencionou chamar de pós-modernidade, por sua vez, não limita a suspensão do seu juízo à fé e à religião. Sua descrença, muito mais ampla que a dos homens das Luzes, atinge também a até então divinizada razão. Aos olhos dos céticos contemporâneos, o conhecimento racional se revelou falível em sua ambição de verdade, uma vez que ele é parcial, concebido a partir de uma perspectiva limitada, e, ao mesmo tempo, se mostrou incapaz de gerar o idealizado progresso, trazendo, ao contrário, uma série de desastres – monstros que a razão, mesmo desperta, e não apenas adormecida como no quadro de Goya, foi capaz de conceber (duas guerras mundiais, holocausto, totalitarismos, bombas atômicas, degradação ambiental, etc.). Em uma era de verdades destroçadas e utopias mortas emerge, assim, uma espécie de ceticismo iconoclasta, irracionalista, obscurantista, um niilismo absoluto que dilui a diferença entre fé e racionalidade afirmando sua equivalência, uma incredulidade tal que, mal terminado o sepultamento de Deus, tratou de assassinar aquela que foi posta em seu lugar. O filósofo romeno Emil Cioran talvez seja maior expressão dessa nova postura. Chamado de a hiena pessimista, esse pensador desenganado, para quem “a lucidez completa é o nada”, desmistificou tanto a fé como a razão, vendo ambas como delírios desprovido de objetividade, produzidos pela sede Absoluto inerente ao homem. Entre o oitocentista Bazarov e o contemporâneo Cioran, entre o ceticismo moderno e o atual, há, portanto, uma distância irredutível: enquanto para os primeiros havia um porto seguro onde ancorar a existência, para os outros, a vida repousa sobre nada. Pois se os modernos encontraram uma substituta para a fé, os pós-modernos ainda não encontraram para a razão. O trono da dinastia dos Absolutos encontra-se vago.

* A gravura acima – O sono da razão produz monstros – é do espanhol Francisco de Goya.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

A BONDADE DE DORIAN GRAY

Depois de ter perpetrado inúmeras perversidades em busca de novos prazeres e sensações, e depois de ser aturdido pelos tormentos do remorso e da culpa ao ver que, por um poder mágico, a cada ato que cometia, seu retrato estampava traços reveladores de sua maldade (“um laivo de crueldade na boca”, mancha vermelha na mão, etc.), Dorian Gray decide, já ao fim do romance, adotar uma nova posição face à vida: opta por abandonar os “atos terríveis” que praticara, bem como a amoralidade e o cinismo que os justificavam, para dedicar-se ao bem, às “boas ações”, à atividade filantrópica. É então que seu retrato, o qual funciona na trama como um espelho lúcido de sua consciência, lhe faz uma nova e mais aterradora revelação. Quando pratica o que considera sua primeira boa ação, Dorian Gray vai até o quarto sujo e abandonado onde escondera a pintura para olhá-la, na esperança de que novos sinais mais agradáveis aparecessem no desenho de seu belo rosto, ou, pelo menos, que desaparecessem os malditos “traços do mal”. Porém, para sua surpresa e desespero, “não havia nenhuma modificação, a não ser nos olhos, que tinham uma expressão de astúcia, e na boca, que se apresentava repuxada por uma ruga de hipocrisia”. Sim, o retrato/consciência lançava-lhe na cara, literalmente, que seu ato bom, assim com sua recente resolução de praticar o bem, não passava da mais pura vaidade e hipocrisia. A bondade aparece a Dorian Gray como um ludíbrio de si mesmo e dos outros, onde, sob o pretexto de ajudar o próximo, procura-se somente conquistar e se pavonear com a fama de benfeitor, além de apaziguar uma consciência culpada. Portanto, é ainda o inescapável egoísmo que continua movendo-o, e o outro continua sendo, a seus olhos, um meio e não um fim. Sem poder suportar o peso dessas revelações, sem poder aceitar os remorsos de uma atitude cínica ou a hipocrisia da filantropia, Dorian Gray tenta destruir seu retrato, o que equivale, para ele, a destruir a própria consciência. Mas, em um desfecho enigmático, é ele quem morre, enquanto o retrato permanece intacto, agora, sem os sinais do mal.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O VÍCIO DE CRER

Não é tanto a mentira que se considera um vício moral; não é tanto ela que tudo fazemos pra evitar. Mais do que mentir, o ato que realmente repudiamos e receamos é crer. É a credulidade, e não tanto a mentira, que temos na conta de moralmente condenável. Quando tomamos conhecimento de algum engano sofrido por alguém, não é sobre o enganador, o criador do embuste, que recaem nossas censuras; não é sobre ele que lançamos nossas invectivas; não é ele o vilão a ser execrado. Ao contrário, é para o enganado, para a vítima do logro, que direcionamos nosso olhar condenador. É ele que, ao acreditar, ao se deixar enredar nas teias da trapaça, incorreu em erro; é ele que procedeu de maneira má; ao passo que o enganador, traiçoeiro e velhaco, este, por sua vez, apenas fez o que se considera normal que se faça, apenas fez aquilo que tem de necessariamente ser feito, de modo que está imune, a salvo de toda crítica moral. Em tempos em que, como já foi dito, os homens são lobos uns dos outros, não é a tendência para enganar, mas a disposição em acreditar no outro – que pejorativamente denominamos de ingenuidade – que é uma perversão ética (O protagonista de O Idiota de Dostoiévski não recebeu tal alcunha e não era espezinhado por outro motivo). O dolo, o ardil, em contrapartida, aparece sob a respeitável e moralmente louvável veste da astúcia, da esperteza. Em poucas palavras, e levando a idéia ao extremo, nossa ética postula que mau é aquele que crê e não aquele que mente. Basta, para comprovar, notar o orgulho daquele que enganou em contraste com a vergonha daquele que foi enganado. Longe estão os tempos em que a palavra dada tinha o peso de um juramento inquebrantável e que a lealdade era um valor tão rígido ao qual quem descumprisse caia em desonra, recebendo a marca de covarde e traidor. Hoje o que é dito pode ser desmentido, o que é prometido pode ser descumprido e o que o jurado pode ser perjurado, tudo sem maiores dificuldades e sem grande prejuízo moral para quem o faz. Em nosso mundo a mentira ganhou legitimidade, foi autorizada, e não nos é recomendado outra coisa a não ser desacreditar... Descrer tornou-se um imperativo moral.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

PERDIÇÃO

Duvidar é transpor o limiar do caos e do desespero. Um homem desprovido de certezas, hamletiano por condição, não vê regularidade e ordem na Vida; e nessa desarmonia geral que é o Universo, ele só pode experimentar um sentimento de paralisia. Irremediavelmente perdido em miríades de interrogações, seus pensamentos formam como que um labirinto, e os caminhos de sua vida, uma interminável encruzilhada por onde não sabe se guiar; seu andar é vacilante, e sua fala, timbrada pela hesitação. Nos antípodas do homem convicto, que vê harmonia em tudo e cujas certezas trazem reconforto pela familiaridade com que o coloca com relação às coisas, o homem que duvida é, onde quer que esteja, um estrangeiro que deslegitima os códigos da existência. Errante por toda parte, portador de uma constante e profunda angústia, sem uma bússola capaz de orientá-lo, ele sofre por ter caído do paraíso das verdades, e está condenado à agonia da descrença por ter se servido da dúvida, o verdadeiro pomo proibido.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

A VELHICE SOB O SIGNO DO CAPITAL

Os idosos de hoje devem invejar os de outrora. Até o nascer da sociedade moderna, burguesa, capitalista os indivíduos em idade avançada tinham uma posição significativamente mais privilegiada do que a que seus semelhantes (em termos de idade) têm na era de hegemonia do capital. Nos antigos meios sociais tradicionalistas, isto é, meios sociais que tinham como fonte de valores as tradições, os idosos eram depositários de saber e, ao mesmo tempo – já que saber e poder caminham de mãos dadas –, centros irradiadores de poder. Tida como signo de sabedoria e autoridade, sendo, por isso, tratada com dignidade e deferência, a velhice também era muito estimada e admirada. A companhia de um ancião era sempre requisitada e todos – até mesmo por se tratar de sociedades cuja principal forma de comunicação era a oralidade – se interessavam por ouvir seus relatos e narrativas. Mas com o despertar dos tempos modernos e a imposição de uma norma burguesa, a condição dos homens e mulheres de cabelos brancos e bengalas se degrada. A partir de então, eles são retirados do pedestal social e moral que ocupavam e são deslocados para uma posição diametralmente oposta. Destituídos da autoridade e do respeito que possuíam, no mundo contemporâneo, os homens envelhecidos só são dignos de indiferença, quando não de desprezo. Parece que perderam o halo especial que os distinguiam. Pois quem mais, em nossos dias, tem interesse ou paciência para ouvir seus sermões? Quem mais se curva diante de suas presenças? A reverência que a velhice inspirava antigamente, tem-se a impressão, que se transformou numa verdadeira ojeriza. Se no passado ninguém, provavelmente, se envergonhasse de dizer sua idade e, muito menos, quisesse deter a marcha inexorável dos anos, hoje nota-se um temor absurdo pelos cabelos brancos e pelas rugas, ao mesmo tempo em que se fabrica todo tipo de parafernália para promover o “rejuvenescimento”. Os chamados sinais da idade tornaram-se estigmas, e a palavra velho injúria grave. E razão dessa reviravolta toda, desse grande deslocamento na condição dos idosos - deslocamento que o próprio surgimento de uma instituição incumbida de seu recolhimento (asilo) denuncia - é que para o capital só tem valor aquilo que produz e aquilo que é novo. Não tendo mais todo aquele apego pelo que é tradicional, mesmo porque hoje as transformações se processam de modo demasiado rápido, nossa sociedade tem um apetite voraz e incessante pela novidade, apetite que só pode ser saciado por uma alta produtividade. Produzir o novo – parece que é isso o que importa em nossa época. Nessas circunstâncias, o indivíduo velho, que representa uma idade essencialmente improdutiva, não poderia ser definido por um termo melhor: inválido, ou seja, sem valor.